Totalmente selvagens
O punk nasceu para sacudir a indolência e a pomposidade do rock. Quarenta anos depois de seu surgimento, ele ainda impera como a manifestação mais visceral da cultura jovem do século XX.
O disco de estreia do quarteto americano Ramones tem 28 minutos e 53 segundos de duração. Bem menos do que, digamos, Tales from Topographic Oceans (1973), do quinteto inglês Yes, que se arrasta por uma hora e 22 minutos. Ramones é feito de canções curtas e diretas. A mais longa tem dois minutos e 38 segundos – cerca de dez vezes menos que Shine on You Crazy Diamond, do disco Wish You Were Here (1975), do quarteto de rock progressivo Pink Floyd. Por fim, as gravações duraram uma semana e custaram 6 400 dólares.
A título de comparação, o bem posterior Chinese Democracy, que saiu em 2008 e era aguardado com ansiedade pelos fãs do Guns N’ Roses, consumiu 728 semanas de trabalho e custou 13 milhões de dólares.
Lançado em 1976, Ramones teve um desempenho pífio: amargou a 111ª colocação na parada da revistaBillboard. Com o tempo, ele se tornaria objeto de culto: a Warner vai lançar uma edição de luxo do álbum, e o Museu do Queens, em Nova York, abriu uma exposição dedicada à banda. Ramones é considerado o marco zero do punk, um dos movimentos mais viscerais da cultura jovem do século XX. O dia do lançamento do disco, 23 de abril – sim, a mesma data em que se lembra a morte de Cervantes e Shakespeare -, vale, portanto, como data de aniversário. O punk agora é quarentão.
Na verdade, o punk talvez esteja escondendo a idade. Suas origens datam do fim dos anos 60, quando bandas como Velvet Underground e MC5 chutaram a conversa sobre paz e amor que dominava a geração hippie. Desagradáveis e insolentes na atitude, esses grupos eram formados por sujeitos à beira da marginalidade. O som espelhava a postura, em músicas distorcidas, sujas e agressivas. Os Stooges, em 1967, trouxeram outro elemento para a alquimia do punk: uma postura de desleixo insolente, que tinha a cara e o corpo do vocalista Iggy Pop, nome de guerra de James Newell Osterberg. Produto da industrial Detroit, Iggy costumava rasgar-se com cacos de vidro e vomitar sobre a plateia. Esses artistas não tinham muito lugar entre os ripongos cabeludos. Só seriam efetivamente compreendidos no fim dos anos 70, quando houve uma espetacular virada no status quo do pop.
A palavra punk data pelo menos do século XVII. Shakespeare – ele de novo – empregou-a, por exemplo, na comédia Tudo Está Bem Quando Termina Bem. Significava “prostituta”. No século XIX, o termo serviria para designar criminosos pés de chinelo, acepção que o crítico americano Dave Marsh tinha em mente ao classificar, em 1971, como punk rock o estilo de Question Mark and the Misterians, obscuro grupo de rock de garagem.
A geração punk era formada por filhos do pós-guerra que cresceram em tempos musicalmente desinteressantes: o rock havia se tornado pomposo e indulgente, e o pop, meloso. Nos Estados Unidos e sobretudo na Inglaterra, a situação econômica era deprê. A cidade de Nova York, berço dos Ramones, chegou perto de pedir falência. Londres ainda tinha áreas não recuperadas dos bombardeios da II Guerra Mundial. Naquela época de desastrosos governos trabalhistas, o desemprego galopava e a Inglaterra era assolada por greves. A música punk traduzia a crise e a turbulência. Seus temas iam do espancamento e da prostituição (Beat on the Brat e 53rd and 3rd, dos Ramones) ao desprezo pelo governo que se atesta nos insultos de Anarchy in the U.K., dos Sex Pistols.
Os dois lados do Atlântico deram expressão distinta ao punk. Os americanos tiveram grupos mais cerebrais e experimentais, como o Television, com seus solos de guitarra influenciados pelo jazz. A Inglaterra chegou mais tarde ao punk: só acordou definitivamente para o gênero depois da primeira visita dos Ramones à ilha, em 1976. Os ingleses, além da militância política pronunciada, engrossaram o caldo musical do punk com a música negra feita por imigrantes que padeciam para encontrar seu lugar no país. A música da Jamaica, por exemplo, ressoa com força nas experimentações com o reggae feitas pelo The Clash. Em meio à explosão de rancor, ainda havia espaço para a poesia de artistas como a americana Patti Smith e o inglês Elvis Costello, que conjugaram a simplicidade musical do novo estilo a letras mais elaboradas.