Numa árvore esculpida como bandeja, passa uma rodada de pratinhos de cerâmica. Dentro deles, o contraste entre o amarelo e o verde chama a atenção. Então, à mesa é anunciada a gema defumada, com couve refogadinha e cubos de barriga de porco assada. Alguém quer? A pergunta correta seria: alguém resiste à aparência, ao aroma?
O flerte divertido com o carbonara, alterna-se com shitake e cogumelo paris, beurre blanc e erva doce, com as vagens na brasa, mostarda, coulis de azeitona e castanhas de caju caramelizadas e também com o creme de abóbora assada, olhete confitado na manteiga, sementes de coentro e chips de mandioquinha.
Por trás desse apetitoso desfile está Giovanna Grossi, primeira brasileira a chegar à final do Bocuse d’Or (principal concurso gastronômico internacional para jovens chefs) e única jurada feminina da competição. No seu autoral Animus, no Baixo Pinheiros, faz sua estreia na gastronomia paulistana.
Ali está sua alma, por mais redundante que isso possa soar: receitas de inspiração artística, ingredientes em seu ápice, rigor técnico e apresentação graciosa. A chef criou um universo em que consegue escutar as estações, sincronizar a cozinha e o clima, olhar com cuidado o que floresce a seu redor.
A seu favor, Giovanna coloca em prática o improvável binômio natureza e tecnologia – que flui muito bem e marca a degustação. Fornos Josper e Rational, horta indoor e produtos sazonais se acordam desde o princípio.
A paisagem circundante acompanha ao exalar uma sofisticação contemporânea – o espaço luminoso e arejado, mérito das amplas janelas do chão ao teto, da madeira de origem que forra o ambiente, da cozinha aberta delimitada apenas por um belo balcão, que faz parceria com o do bar.
Um cenário que se combina ao perfume de ervas frescas, à delicadeza de buquês de flores secas e à dramaticidade da renda de filé gravada na parede, ligeiramente protegida pela adega envidraçada.
Vivaz, o Animus harmoniza ambiente, cardápio e filosofia. Nesse sentido, as porções sob medida de comida de verdade proporcionam uma refeição em diversas etapas, mas sem a morosidade dos menus degustação. Já a escolha minuciosa de cada peça do salão atila a experiência, ao passo que a impressão dos ingredientes no menu marca a busca pelo desperdício zero.
Na prática, isso significa usar jabuticabas no gaspacho da sobremesa e na espuma do mule e pitangas no coulis do mousse de queijo e, de quebra, na taça do sour, enquanto ainda houver frutas frescas. Também implica no improviso, que às vezes garante receitas incríveis: “Assei um pudim e deu errado, mas não queria perdê-lo. Pus ele no sifão, fiz um toffee, para lembrar o queimadinho da calda tradicional de caramelo, e um crocante. Virou a espuma de pudim”.
Ainda sobre reciclagem e doçuras, o brioche caseiro que dá vida ao pain perdu com pêssego fermentado é usado integralmente, como se nota na farofinha de aparas do pão e tomilho que acompanha o galetinho feito no Josper. O kefir alimentado para a produção de coalhada, por sua vez, torna-se um coringa para aportar cremosidade e acidez a diferentes preparos. Já os picles garantem o aproveitamento total de frutas e legumes.
Essa jovialidade também fica evidente na presença de carne vermelha somente no menu executivo (uma fórmula composta por cinco pratos salgados, entre eles, galeto e alcatra, e um doce por R$ 70) e, consequentemente, no protagonismo criativo – e nada panfletário – do reino vegetal.
“Há muito tempo quero me colocar contra à estrutura do fine dining, que inclui desperdícios obscenos e estagiários trabalhando de graça. Queria algo mais humano, leve e surpreendente”, explica Giovanna. Mora aí a gênese de seu Animus e da deliciosa missão de inspirar vivências para a alma.
Sobre Giovanna Grossi
Ela não se lembra, mas quando completou 40 dias, os pais a levaram de Jaú, no interior paulista, para Maceió, a capital alagoana. A memória de crescer comendo cuscuz e macaxeira, porém, é muito presente, assim como a de ter passado natais, réveillons e outros feriados dentro de restaurante, pizzaria e cachaçaria desde que se conhece como gente.
Foram os negócios familiares que inspiraram Giovanna a cursar Gastronomia na Anhembi Morumbi e a partir para a França, em 2012, onde estudou no célebre Instituto Paul Bocuse, integrou a equipe do triplamente estrelado Le Taillevent, aperfeiçoou-se em confeitaria no Instituto Alain Ducasse e estagiou no Maison Pic de Valence.
Coisa de sagitariana que adora mudar, partiu então para a Espanha. Em 2014, inscreveu-se no Basque Culinary Center, em San Sebastian, fez uma temporada no Quique Dacosta e seguiu para Barcelona, onde formou-se em confeitaria para restaurante na respeitada Espai Sucre.
O retorno para o Brasil ganhou alento pela seleção para o Bocuse d’Or, principal concurso gastronômico internacional para jovens chefs. Aos 23 anos de idade, Giovanna venceu a etapa brasileira e a latino-americana, no México, e, em 2017, foi a primeira mulher brasileira a chegar às finais mundiais, novamente em Lyon.
O ineditismo se repetiu este ano quando, a convite de Laurent Suaudeau, foi a única jurada dessa Copa. Atualmente, a chef comanda a Academia Brasil d’Or (organização sem fins lucrativos que ela mesma criou para divulgar nossa cozinha e formar times de competição para o Bocuse d’Or) e começa a trilhar o caminho de cozinheira com casa própria.
Animus: Rua Vupabussu, 347 – Pinheiros – São Paulo/SP – Tel.: (11) 2371-7981
Segunda a quinta, das 12h às 15h e das 19h as 23h | Sexta e sábado, das 12 às 16h e das 19h à 23h30 | Domingo 12h às 17h.