Por Yuri Sahione *
As empresas possuem um papel bastante relevante no desenvolvimento da atividade, mas no passado recente não são poucos os casos em que a personalidade jurídica é usada para facilitar e ocultar a prática de delitos, bem como para lavar os proventos de origem ilegal.
O uso ilegítimo de empresas pode ser mitigado se as informações sobre o representante legal e o beneficiário final da empresa forem transparentes, públicas e estiverem prontamente disponíveis para as autoridades. A disponibilidade e transparência dessas informações permite às autoridades identificar tanto as pessoas físicas que podem ser responsáveis pelo uso ilegítimo da empresa, quanto aquelas que podem ter informações relevantes para uma investigação.
A informação permite também que as autoridades rastreiem a origem do dinheiro em investigações financeiras envolvendo contas e ativos suspeitos. Por fim, tais informações auxiliam na localização de bens na facilitação da decretação da sua indisponibilidade legal. Em resumo, a transparência das informações sobre o beneficiário final de uma empresa auxilia na aplicação eficaz e eficiente da legislação vigente, reduz a impunidade e é instrumento de combate a diversos ilícitos.
Mas afinal, o que é o beneficiário final de uma empresa? Por definição da Receita Federal Brasileira (RFB), trazida na Instrução Normativa nº 1863/2018, é a pessoa natural que, em última instância, de forma direta ou indireta, possui, controla ou influencia significativamente uma empresa; ou a pessoa natural em nome da qual uma transação é conduzida. Cabe ressaltar que o controle ou influência é considerado “significativo” para a RFB quando, direta ou indiretamente (i) supera 25% do capital social da empresa; ou (ii) detém ou exerce a preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores da entidade, ainda que sem controlá-la.
A definição de beneficiário final é especialmente importante em mercados regulados pelo Banco Central do Brasil (BACEN) e Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que em 2020 passaram a exigir das entidades reguladas padrões mais elevados de controles internos para a prevenção à lavagem de dinheiro, por meio da Circular BACEN nº 3978/2020 e Instrução CVM nº 617/2019. Cabe ressaltar que em ambas as normas, por definição, beneficiário final equivale também aos prepostos, procuradores ou representantes legais da empresa que é cliente da entidade regulada e, portanto, as obrigações oriundas dessas normas devem ser estendidas a essas pessoas físicas.
Nesse sentido, ambas as normas trazem linhas gerais de ação no sentido de ampliar e melhor detalhar o procedimento para conhecer o cliente (know your client – KYC), incluindo as rotinas relacionadas ao pleno conhecimento do beneficiário final.
É importante destacar que BACEN e CVM conferem às entidades reguladas alguma discricionariedade na definição, em suas políticas internas de prevenção à lavagem de dinheiro, dos beneficiários finais de uma empresa que são relevantes serem cadastrados/identificados. As entidades reguladas definirão em suas políticas internas o percentual do capital social acima do qual uma pessoa física que detém participação societária em uma empresa será considerada beneficiária final para fins do cumprimento das obrigações normativas e, portanto, deverá passar pelo procedimento interno de KYC.
Contudo ambos órgãos reguladores aderiram ao parâmetro da RFB e, para fins do cumprimento dessas obrigações, o percentual de participação mínimo que caracteriza o controle direto ou indireto não pode ser superior a 25% da participação. Ou seja, as entidades reguladas podem ser mais criteriosas e optar por conhecer o acionista ou sócio de empresa que detém menos de 25% do capital social, mas não poderá se omitir de conhecer o acionista ou sócio que detém mais de 25%. Esse é apenas mais um exemplo de como as normas de prevenção à lavagem de dinheiro adotaram a abordagem baseada em riscos para estruturação da política PLD-FT, procedimentos e controles internos.
Mas o conhecimento das informações acerca do beneficiário final de uma empresa não é importante apenas para aquelas empresas que são obrigadas pelos órgãos reguladores. O procedimento KYC é relevante para fomentar a transparência e governança em qualquer empresa. Conhecer o cliente ou prestador de serviços (know your supplier – KYS) é importante para prevenir ilícitos de diversas ordens, especialmente fraudes, desvios de recursos da empresa e pagamento de vantagens indevidas a agentes públicos. O procedimento de KYS, por exemplo, ajuda a prevenir conflitos de interesses, em que a empresa detida por um funcionário, familiar ou pessoa do seu estreito relacionamento é contratada em detrimento do melhor preço ou qualidade do serviço, mas pelo vínculo pessoal existente.
Por ora as normas brasileiras que obrigam as empresas a conhecer o beneficiário final de seus clientes estão restritas aos mercados regulados pelo BACEN e CVM. Contudo, a tendência é que o dever legal se expanda a empresas que exercem outras atividades. A aprovação do U.S. Corporate Transparency Act pelo Congresso norte-americano no começo de janeiro de 2021 é apenas uma evidência dessa tendência. A lei abrangeu as sociedades anônimas e sociedades de responsabilidade limitada de forma geral, mas por outro lado excluiu empresas de capital aberto e empresas já sujeitas a certas regras regulatórios específicas, dentre outros.
Sendo uma tendência internacional, pensar a transparência societária como um componente do planejamento e estruturação da atividade empresarial certamente irá impactar a forma como operações societárias são feitas.
* Yuri Sahione é advogado, sócio da área de Compliance, Penal Econômico e Investigações do Cescon Barrieu