Dr. Alessandro Silveira
O transplante de fezes tem o poder de recolonizar o intestino com bactérias boas, microrganismos responsáveis por fortalecer o sistema imune e proteger o organismo de doenças.
Alguns assuntos dificilmente entram na pauta cotidiana das pessoas. O cocô é um deles. No botequim, festas e churrascos talvez vire tema em razão da embriaguez alcóolica que costuma acompanhar essas confraternizações. Por que alguém falaria disso em sã consciência, certo? Trata-se de algo relativo às profundezas do corpo que este precisa e insiste em eliminar. Tem uma aparência repulsiva, um cheiro ruim e, sabemos, é veículo de muitas doenças. Até por isso precisa ser escondido e para se livrar dele (não só dele, certamente), a humanidade inventou o vaso sanitário, a descarga e o sistema de esgoto. Dessa forma, encontramos um meio rápido e indolor, de transportar esse objeto de asco para as profundezas da cidade.
Mas você já deve ter ouvido essa frase: ninguém é 100% bom ou mau. Com o cocô a mesma ideia se aplica. Se é vilão em algumas histórias, em outras é herói, que salva a vida dos indefesos. Vejamos o caso do transplante de fezes, que é descrito em detalhes no livro “O lado bom das bactérias – O poder invisível que fortalece sua defesa natural para ter uma vida mais feliz e longeva” de autoria do farmacêutico, bioquímico e pós-doutor em microbiologia, Alessandro Silveira. Trata-se de um procedimento que consiste na transferência do cocô de uma pessoa saudável para uma pessoa doente.
Para entender porque a doação de cocô realmente funciona e pode mudar vidas é preciso estar ciente de que é no intestino que vive a maioria esmagadora das bactérias boas. Conforme Silveira, a chamada microbiota intestinal é responsável por 80% da resposta imune do organismo. O pós-doutor em microbiologia informa que o intestino é a principal fonte de contato com o microrganismo indesejado, que chega também por meio da alimentação. “As bactérias presentes no órgão formam uma camada protetora, uma barreira física mesmo, na qual as toxinas e agentes patológicos se grudam, ficando assim impossibilitados de infectarem a célula e adoecerem o corpo”, explica.
É por isso que, apesar de as pessoas acharem nojento, dar uma olhada no cocô no vaso sanitário é uma ação que pode prevenir doenças. Silveira explica que ao observar as características do próprio cocô, a pessoa pode detectar a disbiose, que nada mais é do que o desequilíbrio da flora bacteriana intestinal. Conforme o pós-doutor em microbiologia, quem não evacua, por exemplo, já tem um diagnóstico de que algo está errado, já quem evacua demais, pode avaliar a consistência, cor e aspecto, para saber como está a saúde. “As pessoas que convivem comigo sabem que sempre que evacuo observo como estão as minhas fezes. É um hábito que espero que todo adquiram um dia”, diz.
Tudo bem, você gostou da ideia, está com alguns problemas intestinais – caganeira ou prisão de ventre – e acha que encontrou a solução: é só receber um transplante de cocô. Bom, não é bem assim. De acordo com Silveira, apesar de o transplante de fezes ser um procedimento de fácil realização, com resultados instantâneos, ele deve ser realizado somente para tratar condições clínicas específicas. Por exemplo, por quem tomou antibióticos durante muito tempo como se fosse água e, por isso, causou estragos permanentes às bactérias do intestino, por pessoas com autismo, por quem está com depressão e por quem sofre de obesidade.
Se pessoas nesta condição, tentaram outros tratamentos, chegando a mudar a alimentação e o estilo de vida – consumindo menos industrializados e fazendo mais exercício físico – e mesmo assim não conseguiram mudar o perfil de suas bactérias intestinais, o transplante pode ser a única saída. “O procedimento funciona como se a pessoa estivesse reiniciando o sistema operacional do computador”, explica Silveira. O contato com o cocô saudável resulta na retirada de todas as bactérias prejudiciais e numa nova colonização por bactérias boas.
Além disso, há outros trâmites que tornam a intervenção um pouco mais complicada do que uma mera troca de cocô. Por exemplo, é necessário encontrar um doador com um perfil bacteriano específico. E quando falo específico quero dizer alguém que tenha uma vida acima de qualquer suspeita. Tenha tratado bem seu corpo ao longo dos anos e por isso apresente uma flora intestinal bacteriana como se fosse novinha em folha.
Contudo, aparentar saúde não significa tê-la de verdade. Por isso quem almeja ser doador precisa ter sua história de vida passada a limpo. Informações sobre o tipo de nascimento (parto normal ou cesárea), a dieta alimentar, o histórico de doenças – se exames detectaram hepatite, HIV, Rotavírus, Giardia e outras parasitoses – tudo isso deve ser levado em conta para que o receptor do novo cocô não tenha uma amarga surpresa depois que o transplante for realizado. Não à toa, para evitar esse verdadeira odisseia, muitos escolhem algum familiar, cuja história de vida é conhecida. O que nem sempre significa sucesso, afinal de contas, esse membro da família pode ser um contumaz devorador de salgadinhos e refrigerante.
Mas o transplante propriamente dito, como é feito? Envolve a utilização de bisturi? É preciso incisão ou sutura? Há sangue? Não, nada disso. O procedimento é bem simples e pode ser realizado por meio de uma colonoscopia. O cocô do doador (preparado por um microbiologista) é colocado em um mixer, onde é batido e posteriormente diluído em soro. A mistura então é inserida em uma seringa e borrifada durante meia hora nos intestinos grosso e delgado do receptor. Conforme o pós-doutor em microbiologia, não obstante a sua singeleza, o processo pode ser efetuado somente após indicação clínica e sob supervisão médica direta.
Como Silveira explica os resultados são satisfatórios e imediatos. Um amigo do bioquímico, que sofria há algum tempo as agruras de uma microbiota doente, resolveu, com o auxílio de seu gastroenterologista, receber um transplante de fezes e rapidamente experimentou as delícias ocasionadas pelo procedimento. “Além da inflamação do corpo ter diminuído, o intestino voltou a funcionar normalmente, o sono melhorou, a glicose voltou ao lugar e a mente ficou mais focada”, relata.
Por mostrar resultados positivos é que o transplante de cocô já é utilizado em muitos países no auxílio ao tratamento de doenças físicas e mentais, tais como obesidade, depressão, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e autismo. No Brasil, entretanto, explica Silveira, o tratamento é autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apenas como recurso terapêutico para combate a infecção intestinal causada por Clostridioides difficile, bactéria responsável por doenças gastrointestinais associadas a antibióticos. Isso não significa que não seja possível realizá-lo no país mesmo sem padecer das doenças ocasionadas pela bactéria. “Desde que seja recomendado e avalizado por um médico, o transplante de fezes não é proibido”, diz.
Entusiasta do transplante de cocô, Silveira defende que a Anvisa autorize o uso do procedimento no Brasil para tratamento de outras doenças, além das causadas pela Clostridioides difficile. Conforme o pós-doutor em microbiologia, isso seria simples de ocorrer, desde que houvesse uma forte regulamentação, obedecendo critérios rigorosos para a seleção dos doadores. “Para doar sangue é preciso, inicialmente, responder um longo questionário e, depois de aprovado, passar por rigorosos exames de sangue. Por que não podemos ter um protocolo semelhante para o transplante de fezes?”, indaga.
O bioquímico sonha com um mundo em que o transplante de fezes seja uma prática tão comum quanto a diálise. Na Europa, por exemplo, cita Silveira, alguns consórcios já trabalham com banco de fezes nos moldes do banco de sangue. “Imagina a melhor profissão do mundo: você tem uma vida regrada, alimentação saudável, pratica exercícios periodicamente, dorme bem e não tem aquela cobrança constante pelo cumprimento de metas. Tudo o que precisa fazer é coletar diariamente seu cocô e levar para doação”, diz.
Sobre Dr. Alessandro Silveira
Graduado em Farmácia-Bioquímica pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Ciência Médicas pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e pós-doutor em Análises Clínicas, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).