*Alexandre Aroeira Salles
É atordoante o grau de desinformação que boa parte classe política consegue gerar entorno dos mais variados temas. A chamada CPI da COVID-19 é apenas mais um.
O governo federal vem divulgando as somas de recursos enviados para os Estados, atestando o cumprimento da sua parte. Governadores e prefeitos, por sua vez, alegam que não conseguiram fazer muito com o que receberam, a despeito das elevadas somas, e que ainda tiveram que lutar contra o exemplo de um presidente que negligencia a gravidade desse vírus. Quem tem razão?
Como não sou médico, restrinjo-me apenas à análise do tema sob a perspectiva jurídico-constitucional.
A CF/88, em seu artigo 21, diz que compete à União “planejar e promover a defesa contra as calamidades públicas”, assim como “elaborar e executar os planos nacionais (…) de desenvolvimento social”, e os serviços de navegação aérea, transporte interestadual e internacional de passageiros, mantendo relações com países estrangeiros. Incumbe também à União (art. 22) legislar sobre as diretrizes da política nacional de transportes, política de crédito e requisições civil e militares em caso de iminente perigo.
Não obstante, é competência comum da União, dos Estados e dos Municípios (art. 23) cuidarem da saúde e assistência pública, cabendo aos Estados e à União (art. 24) legislarem sobre proteção e defesa da saúde, concernindo à União estabelecer normas gerais, e apenas na hipótese de sua omissão, podendo os Estados atenderem as suas peculiaridades (§ 3º, art. 24). Por fim, vale lembrar que compete aos Município (art. 30) legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
A Constituição traz consigo uma lógica simples: tudo que envolva dois ou mais municípios é de competência do respectivo Estado Membro atuar; tudo que transborde as fronteiras de um ou mais Estados é de competência da União liderar; assim como aquilo que vem do exterior, é responsabilidade da União gerir.
O esperado constitucionalmente para o Brasil teria sido o Governo Federal, desde fevereiro de 2020, ter conseguido liderar um esforço nacional de proteção e combate ao COVID-19, promovendo diretrizes que minorassem os seus efeitos. Tais diretrizes referem-se a competências de âmbito da União, tais como planos nacionais, transporte interestadual e internacional, relações internacionais e com organizações multilaterais, suprimentos nacionais e programa nacional de imunização.
Contudo, as omissões, falas e posturas do Presidente da República e do Ministério da Saúde trouxeram sérias dúvidas e enorme insegurança sobre suas eficácias na prevenção e controle do vírus, acarretando um salve-se quem puder, de modo que cada governador e prefeito passou a seguir suas fontes próprias de orientação, muitas vezes desencontradas e exageradas. Para tanto, agarrados nas competências constitucionais comuns e concorrentes com a União, legislaram do modo que puderam, a ponto de municípios vizinhos e divididos por uma avenida estabelecerem decretos diferentes para abertura e fechamento de comércio. Não poderia dar certo mesmo.
O tumulto foi tão significativo que houve necessidade de o STF arbitrar o conflito instalado entre os entes federativos, decidindo que as orientações científicas internacionais relacionadas ao COVID-19 não estavam sendo seguidas pela União, denotando inação, o que acabava por autorizar os Estados e Municípios a cumprirem suas competências comuns de realização da saúde “amparada em evidências científicas” (ADI 6.341/DF).
É dessa confusão que se instalou que hoje ouvimos gritos por todos os lados, cada um colocando a culpa no outro, quando, na verdade, o que o Constituinte de 1988 tentou fazer foi organizar a República Federativa do Brasil entregando à União a responsabilidade de “planejar e promover a defesa contra as calamidades”. Infelizmente o líder do Poder Executivo da União no período dessa pandemia não conseguiu encontrar forças intelectuais ou políticas para exercer o papel que se deveria dele juridicamente esperar: liderança.
Como se sabe, líder é aquele que consegue inspirar e motivar as pessoas a somarem seus esforços em prol de um bem comum, ultrapassando conjuntamente e em sinergia os obstáculos que se apresentam, atenuando os conflitos e encontrando os pontos focais do grupo. Por meio de seus exemplos e palavras, o líder influencia e gera, com naturalidade, a confiança do time, cabendo-lhe reconhecer seus erros, ser convencido pelos liderados e ajustar o planejamento.
A CPI que agora se instaura deparará com os constitucionais dispositivos, incumbindo-lhe destrinchá-los, camada a camada, até chegar à inevitável conclusão da ausência de coesão nacional no momento histórico que o Brasil mais precisava. O pior é que ainda precisamos desesperadamente de tal coesão, mas, pelo visto, estamos longe de consegui-lo.
*Alexandre Aroeira Salles é doutor em Direito e sócio fundador da Aroeira Salles Advogados