Os primeiros dias da pandemia no Brasil foram marcados por imensa expectativa e algum desânimo. Desde os conflitos mundiais que marcaram a primeira metade do século 20, a sociedade não enfrentava um quadro tão complexo como o gerado pelo Coronavírus. Livrarias fechadas, desemprego, baixo nível de atividade econômica e caos sanitário compunham um cenário desolador.
Com esse pano de fundo de incertezas e temores, alguns questionamentos logo se fizeram presentes: que tipo de planejamento caberia em um mercado editorial já antes turbulento? Como reagiriam leitores, colaboradores e fornecedores, e que impacto haveria na vida de todos? Como liderar equipes em home-office?
Passados nove meses, o saldo da tragédia pode ser contabilizado, de um lado, pelas mais de 190 mil vidas ceifadas, que exigem silêncio respeitoso pelas famílias enlutadas. Nada se compara à dor que viveram, e ainda vivem. De outro lado, pelo sucesso que, com coragem e inovação, o seguimento editorial alcançou, cumprindo assim seu papel de informar e entreter.
Por trás desse desempenho inesperado, um novo mundo digital foi posto à prova, “mundo” que não se resume apenas a publicações digitais, ainda que indubitavelmente fundamentais e das quais trataremos a seguir. Neste momento, contudo, vale a pena mencionar o papel expressivo de outras facetas desse universo. As interações em redes sociais foram essenciais para manter aberto o canal com leitores e clientes.
Pesquisas de produção e vendas patrocinadas pela CBL e pelo SNEL revelam que historicamente o setor religioso apresenta razoável estabilidade, tendo alcançando um share próximo a 16% do mercado, em 2019, em obras impressas. Contudo, em se tratando de publicações digitais o segmento religioso não apresenta o mesmo desempenho, com percentual inferior a 1%. Entretanto, o segmento religioso oferece uma gama expressiva de conteúdo de forma gratuita, cujas pesquisas não alcançam.
O livro campeão de vendas em quase todo o planeta, a Bíblia Sagrada, não só continua a apresentar um bom desempenho de vendas no formato impresso, como alcançou uma trajetória impressionante no ambiente digital, em aplicativos de leitura e em áudio. Disponível gratuitamente em diversas versões e traduções, chega a contabilizar, no aplicativo mais popular, mais de 2 milhões de acessos em um domingo típico.
Na Editora Mundo Cristão o digital foi sempre prioridade. Em 2012, iniciamos a conversão de nosso catálogo para o formato e-pub e, desde 2017, já convertemos cerca de 100 obras em formato audiolivro, incluindo os 66 livros de nossa tradução da Bíblia, cujo acesso pode ser feito gratuitamente e já alcançou mais de 2 milhões de usuários. Para 2021, já estão em produção outras 12 obras. E não vamos parar por aí.
O resultado desse investimento em obras digitais já pode ser mensurado. Em momentos de pico, a receita desse segmento contabilizou 5% do faturamento total. Trata-se de um resultado surpreendente, pois não estamos falando de substituição de faturamento, uma vez que a venda de obras impressas não caiu em 2020. Em vez disso e contra todos os prognósticos, experimentou crescimento.
Apesar do expressivo avanço do mundo digital, não trabalhamos com a perspectiva de que esse formato supere o impresso, afinal, criado há mais de 500 anos, o livro continua a se mostrar um produto revolucionário. Contudo, o avanço das publicações digitais cumpre papéis importantes.
Durante a pandemia, a receita de obras digitais dobrou, revelando que toda editora precisa entender-se não só como publicadora de obras impressas, mas como provedora de conteúdo. Por sua vez, o leitor precisa nos ver como uma fonte segura desse conteúdo, seja em formato impresso, seja digital. Vale aqui mais uma vez o lembrete: digital não é sinônimo apenas de eBook e audiolivro, mas abrange planos de leitura, blogs, podcasts, mensagens em WhatsApp e redes sociais, integrando um cardápio informativo que nos aproxima do público-alvo.
Embora ainda estejamos vivendo um cenário incerto, a pandemia nos ensinou algo precioso: independentemente da calamidade, é possível estar presente na vida dos leitores e leitoras, o que não quer dizer, contudo, que as livrarias físicas sejam dispensáveis. Ao contrário. É fundamental que o público possa ver e manusear os lançamentos.
A tecnologia não só é uma grande aliada na gestão empresarial, na produção de obras, na ampliação de formatos, na venda e no relacionamento com o leitor como ainda nos permitiu enfrentar a pandemia sem colocar em risco as pessoas e a organização. Cabe agora às editoras encontrar um modelo híbrido que, ao mesmo tempo em que valoriza o digital, reconheça o papel fundamental das livrarias como um espaço de convivência, disseminação e apresentação das novidades editoriais.
*Renato Fleischner é formado em Jornalismo pela PUC-RJ. Possui MBA em Marketing pela FEA-USP. Atua há mais de 30 anos no mercado editorial, 17 dos quais na Editora Mundo Cristão, como gestor de operações.