*Por Márcia Tolotti
É fácil compreender o motivo pelo qual muitas pessoas estão comentando o documentário “O Dilema das redes” da Netflix, porque, de fato, é um impasse que ocorre nas redes sociais com fortes implicações no âmbito social e econômico. Todos reconhecem isso, já que a internet e seus desdobramento trouxeram muitos aspectos positivos, desde conexões entre pessoas afastadas, novas empresas e negócios, entretenimento, educação, fomento aos relacionamentos interpessoais, pesquisas coletivas, ações colaborativas em larga escala e até problemas de saúde sendo resolvidos em curto prazo. Os benefícios são inúmeros e esse lado da moeda é ótimo.
Mas, o que nem todos percebem são os efeitos colaterais nocivos e nada ingênuos desse suposto avanço tecnológico. Construímos incessantemente uma mentalidade que mostra a época em que vivemos. Como seremos retratados no futuro? Talvez como zumbis buscando aprovação constante, fingindo uma pose, uma vida, um corpo para uma foto a ser compartilhada, curtida e invejada? Estamos enfeitiçados, viciados e alienados.
Vivemos a suposição de avanço e liberdade enquanto somos manipulados psíquica e emocionalmente e, por isso, valem os questionamentos a seguir: realmente estamos livres quando formamos filas para comprar algum produto? Genuinamente somos autônomos para reproduzirmos pensamentos e comportamentos quando não fizemos uma profunda reflexão? De fato, temos conhecimento quando não abrimos um livro e lemos ou buscamos as fontes e as antíteses para formar nossa opinião?
A tecnologia sedutora e manipuladora descobriu o poder do inconsciente, bem que Freud nos avisou sobre isso há mais de 100 anos atrás. O inconsciente é uma parte da nossa mente que só dominamos, em certo grau, quando analisamos a motivação para determinados comportamentos. Podemos sim ter acesso ao inconsciente, mas isso exige trabalho, esforço, autoconhecimento e autorresponsabilidade. Assumir nossas falhas, mas também nossa essência, nosso propósito de vida e nosso desejo são tarefas de uma travessia do inconsciente. Ou cada um faz isso, ou isso é feito para cada um. A tecnologia tem assumido esse lugar, o lugar de desvendar – manipular – os desejos, as intenções, os gostos de forma altamente eficaz, pois, quando escolhemos uma viagem, um objeto, uma casa, um celular, realmente estamos escolhendo ou isso nos é “sugerido” o tempo todo ao dar um scroll na tela do smartphone ou computador?
Parece que não, parece que nossa “chupeta digital” dita inclusive o que perceber, como sentir, como reagir e até o que argumentar. E se você discordar daquilo que está escrito aqui, irá rapidamente encontrar centenas de comunidades que também vão criticar, e aí você se fecha outra vez em sua bolha onde será compreendido e apoiado, pois ninguém mais consegue suportar frustrações, solidão e pensamentos críticos.
Os personagens do documentário dizem que sabiam o que estavam fazendo, mas mesmo assim fizeram. Isso pode ser chamado de razão cínica, um conceito de É fácil compreender o motivo pelo qual muitas pessoas estão comentando o documentário “O Dilema das redes” da Netflix, porque, de fato filósofo esloveno, que mostra como a cultura vigente é pautada pelo cinismo: “Sabemos que está errado, mas mesmo assim fazemos”. Temos alianças sociais que reproduzem isso. Quando alguém posta o famoso “#TBT” de um final de semana maravilhoso com fotos totalmente editadas e, talvez, instantes antes estava discutindo, ou triste, mas mesmo assim parou para tirar a foto, não é a reprodução de um cinismo? Por outro lado, mesmo imaginando que a felicidade daquela foto pode não ser real, não deixamos de sentir que deveríamos ter uma mesma vida.
Simulamos um mundo, uma realidade paralela, mas em nosso psiquismo não sentimos essa diferença. Então é por isso que jovens se matam por não serem aceitos ou por se sentirem impotentes. Por isso que passamos o jantar com nossos celulares enquanto outras pessoas preenchem o cenário da casa num vazio de sentimento. Por isso nos escondemos nos banheiros para ter mais tempo para ver um mundo correr virtualmente. Já somos zumbis virtuais em busca de um mundo utópico com a ilusão de que temos uma consciência ampliada. Nunca fomos tão cegos acreditando que percebemos uma realidade aumentada, assim como no conto de Herbert George Wells, escrito em 1899, “Em terra de cego” quem tem um olho é o estranho, o esquisito, o rechaçado. Resta saber quem de nós é cego e quem enxerga.
Se por um lado o documentário mostra que a guerra do “controle remoto” está ameaçando a democracia e desestabilizando o tecido social, por outro lado podemos combater esse “Frankenstein Digital” subvertendo a demanda e alterando o rumo.
Mudanças são possíveis e se analisarmos o inconsciente da rede que é formado por cada um de nós podemos acelerar o bem-estar coletivo. Se nos conectarmos com a parte boa da web – não a deep – para deixarmos de participar do “rebanho ego-gregário” podemos construir uma sociedade que encontre a cura para a covid-19 e para a dismorfia, a distorção e o vício de uma vida ilusória que nos é imposta. Nosso dilema não é usar ou não a tecnologia – não temos essa escolha – mas ao utilizar, que possamos nos questionar qual benefício verdadeiro estamos tendo quando doamos nossa vida e nosso tempo para ela.
*Márcia Tolotti é psicóloga e psicanalista, consultora financeira e especialista em educação financeira a nível pessoal e corporativo. Já publicou sete livros sobre autoconhecimento e mercado financeiro, como ‘O Desafio da Independência – Financeira e Afetiva’, que já teve mais de 50 mil exemplares vendidos, e ‘As Armadilhas do Consumo’. https://marciatolotti.com.br/