Por Gabriel Seijo, Alexandre Leite e Pedro Schönberger *
O Brasil passou a adotar o Preço de Liquidação de Diferenças (“PLD”) com base horário em 2021. Como exploramos a seguir, a adoção desse modelo pode impactar o equilíbrio econômico de contratos de compra e venda de energia (“PPAs”), a depender da modulação daqueles contratos. Nesse sentido, existe o risco de discussões sobre a renegociação de contratos, a exemplo do que ocorreu durante a pandemia do Covid-19 – o que suscita questões jurídicas que analisamos, de maneira preliminar, a seguir.
O PLD Horário
A introdução do PLD com base horária (e não mais de forma semanal como até então praticado) era prevista desde a década de 1990, e tal modelo já era adotado em outros países. No entanto, a realidade da matriz energética brasileira não tornava premente sua adoção (dada nossa matriz hidrelétrica com grande capacidade de reservação). Todavia, o cenário de previsibilidade da geração se alterou de maneira relevante e acelerada na última década por diversos fatores, dentre os quais:
a evolução tecnológica e a gradual abertura e relevância do mercado livre;
a redução da relevância relativa das usinas hidrelétricas na matriz elétrica nacional e utilização de reservatórios de água para consumo;
a construção de usinas hidroelétricas a fio d’água, cujo nível de produção de energia é altamente afetado pela sazonalidade; e
a introdução de energias renováveis, especialmente eólica e solar e sua intermitência de geração característica.
Até 2020, o PLD era calculado em três patamares referentes a momentos de carga alta, média ou baixa; e estes três valores permaneciam vigentes durante toda a semana. Em 2021, o PLD passou a ser divulgado com base horária. O PLD é o preço da energia no Mercado de Curto Prazo (“MCP”) e a exposição de um agente ao MCP depende do resultado de seu balanço energético – que compara as quantidades de energia geradas, consumidas e comercializadas de cada agente da CCEE. Nesse sentido, as dimensões relevantes para a exposição no MCP são a curva de geração (ou de consumo), as obrigações contratuais do agente e o PLD.
O objetivo deste artigo é explorar casos que apresentam desafios imediatos diante dessa modificação regulatória: PPAs no mercado livre, envolvendo fontes renováveis (e intermitentes, razão pela qual são mais afetadas pela variação do PLD ao longo do dia e o consequente aumento de sua volatilidade) – e a modulação dos contratos, até então pouco discutida, definirá qual das partes estará exposta ao risco da variação do PLD[1].
Os impactos econômicos dessa mudança regulatória terão de ser absorvidos pelas partes, o que pode levar a tentativas de rescisão e/ou rediscussão por vias arbitrais e judiciais, conforme analisamos abaixo de forma preliminar.
Renegociação de PPAs
A experiência recente da pandemia mostra que a tentativa de renegociação de contratos é uma estratégia conhecida pelos agentes. A adoção do PLD horário pode impactar o resultado econômico das partes de um PPA, em maior ou menor grau, a depender de como tal contrato tenha sido modulado. A partir daí, as partes podem procurar rediscutir os termos de seus PPAs.
Inúmeros exemplos podem ser suscitados: um PPA de energia eólica com modulação flat, o vendedor teria precificado a incerteza de sua geração a fim de chegar ao preço negociado. Com o PLD horário, essa equação se altera – e pode impactar o equilíbrio contratual, uma vez que parques eólicos costumam gerar na madruga, momento em que o PLD horário se encontra no preço mais baixo (portanto venderiam seu excesso em um momento barato) e não geram energia em horário de pico (precisando comprar energia no momento mais caro). No caso inverso, se a modulação se desse conforme o perfil da carga, o consumidor poderia se ver diante de uma situação em que seria necessário alterar os horários de funcionamento de sua planta industrial. Diante disso, cabe se indagar – seria possível rediscutir os termos destes PPAs?
Primeiro, cabe esclarecer que, de acordo com a legislação brasileira, as partes não têm direito adquirido a um determinado regime jurídico. Nos PPAs, é comum que as partes tratem do tema da alteração legislativa nas próprias disposições contratuais, prevendo que mudanças na regulação vigente que impactem substancialmente as suas condições permitem que as partes negociem um aditamento ao PPA para preservar seu equilíbrio econômico-financeiro.
Por outro lado, é também muito comum que variações do PLD sejam excluídas do conceito de força maior – uma vez que a oscilação do PLD é inerente ao modelo e, portanto, o risco já teria sido internalizado pelas partes. No entanto, seria possível diferenciar a oscilação do PLD da alteração nas regras para seu cálculo. No caso da adoção do PLD horário, se está diante de uma alteração da regulação, mais precisamente na forma de cálculo do PLD e no seu mecanismo de funcionamento.
Para contratos que não possuam cláusula disciplinando o seu aditamento pode-se vislumbrar três possíveis análises: (i) renegociação, ainda que o PPA seja silente sobre o tema, com base no art. 422 do Código Civil; ou (ii) a revisão contratual (art. 421-A, inciso III do Código Civil, seja com base (a) na teoria da imprevisibilidade, seja com base (b) na onerosidade excessiva da relação contratual.
A despeito de ausência de previsão expressa, uma das partes poderia buscar a renegociação. A doutrina se divide quanto à existência (ou não) de um dever de renegociar contratos em razão de circunstâncias inesperadas. Os que sustentam haver esse dever buscam fundamento no princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 422 do Código Civil. Se uma solução amigável não for alcançada, a parte interessada poderá valer-se dos dispositivos legais que permitem a revisão judicial de contratos – também aplicáveis aos contratos que possuem disposições expressas sobre renegociação.
A revisão judicial de contratos é hipótese excepcional no ordenamento brasileiro[2]. Todavia, existem hipóteses de reequilíbrio contratual previstas pelo ordenamento. Nesse sentido, dada a desproporção superveniente nos valores das prestações (e consequente desequilíbrio da relação sinalagmática) e a imprevisibilidade da alteração regulatória (ou de seus impactos nas relações entre particulares), poderia ser considerada a aplicação do princípio da cláusula rebus sic stantibus. Nos seus termos, caso durante a execução do contrato ocorra uma modificação imprevisível da relação sacrifício/benefício pelas partes quando da formação do contrato, haveria razões para alterá-lo, conforme previsto no artigo 317 do Código Civil. Todavia, tal dispositivo tem aplicação restrita pelas cortes brasileiras, e sua aplicação não é facilmente adotada[3].
A discussão de revisão do contrato pode também se direcionar a um pedido de resolução do contrato por onerosidade excessiva, conforme artigo 478 do Código Civil. De fato, a depender do perfil de geração da usina, a manutenção do contrato pode se tornar excessivamente onerosa para o vendedor, que sofrerá seguidas exposições ao mercado de curto prazo em valores diferentes daqueles que haviam sido precificados quando da elaboração do contrato. No entanto, um tópico complexo que teria de ser enfrentado nessa seara é a vantagem da contraparte e caracterização de vantagem extrema, em um modelo de liquidação multilateral como o do MCP.
A introdução do PLD horário impactará o balanço energético de vendedores e consumidores livres de energia. A partir de sua adoção em 2021, podemos assistir um grande número de discussões para revisão de PPAs. No entanto, as peculiaridades técnicas do setor elétrico e as constatações jurídicas, acima delineadas, tornam difícil a adoção de fórmulas prontas acerca da possibilidade ou não de reequilíbrio contratual. Eventuais negociações e discussões judiciais sobre esse ponto devem ser conduzidas com cautela e lastreados no caso concreto.
[1] Consumidores no mercado livre costumam preferir contratos na modalidade flat e geradores precificam tais riscos em seus contratos.
2 Conforme previsto no artigo 421-A, inciso III, do Código Civil, a “revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.
3 Vide posicionamento do STJ, que explicita que a mera quebra de expectativas de lucratividade não é equivalente a uma alteração inaceitável da comutatividade das prestações (REsp 977.007/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/11/2009, DJe 02/12/2009)”
* Gabriel Seijo, Alexandre Leite e Pedro Schönberger são, respectivamente, sócio e associados do Cescon Barrieu