*Por Márcia Tolotti
Não é de hoje que o ser humano foi se transformando em um sujeito atópico, com dificuldade de encontrar seu lugar e com uma sensação de inconsistência. A pandemia exacerbou os sentimentos de insegurança individuais e coletivos, demonstrando ainda a tendência ao individualismo, que sempre existiu e vem se tornando um mal ainda maior no século XXI. As pessoas tendem a interagir digitalmente umas com as outras, sem o real calor humano. O isolamento demonstrou o quanto o contato com o outro é fundamental.
Vivemos em uma sociedade e uma cultura que nos forçam a perseguir um ideal irreal de felicidade, muitas vezes exibido nas redes sociais. Sem facilidade de dizer Não para situações de “suposto” prazer, fomos nos tornando reféns de ilusões e fantasias de felicidade plena. Em certo grau, perdemos a noção de que a vida também é feita de privações. Ainda cuidamos e hierarquizamos nossas ações em termos de Bem e Mal, mas deixamos de delegar à religião, ao trabalho, as relações sociais ou à família o papel de dar sentido à vida e acabamos privatizando esse sentido.
O que exatamente isso quer dizer? Que passamos a usar como parâmetro de certo, errado ou merecimento quase que exclusivamente nosso ponto de vista. A individualização extremada nos tornou os “únicos e infalíveis juízes” das mazelas da humanidade ou daqueles que nos rodeiam inclusive daquilo que é considerado “normal” ou “anormal”. Mas quando se trata de saúde mental, como estamos reagindo? Tendemos a pensar que normalidade está ligada a saúde e que anormalidade está ligada a doença. Não podemos esquecer que até pouco tempo atrás transtornos mentais eram vistos como demonizações.
Somente a partir do século XIX foram sendo estabelecidos os conceitos de doença e saúde mental. Se sofrimentos psíquicos ou manifestações “fora do padrão” eram vistas como pactos demoníacos, era natural haver uma exclusão dessas pessoas e como herança cultural carregamos esse estigma, ainda que mais ameno, até hoje.
Atualmente encontramos formas variadas de adoecimento emocional com nomenclaturas nem sempre unanimes, mas a partir de março de 2020 com o advento da pandemia causada pelo Covid-19, um ponto se tornou comum tanto entre profissionais da saúde mental quanto da população em geral: as pessoas estão sofrendo muito.
O distanciamento prolongado, o medo do desconhecido e da morte pelo vírus e a possível perda do trabalho tiveram como consequência o aumento expressivo de doenças psicossomáticas. De crianças a idosos a vulnerabilidade passou a fazer parte do mundo, ninguém saiu ileso e, sem contabilizar outras doenças, somente os casos de depressão somam 11 milhões de brasileiros acometidos por esse mal, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mas afinal o que acontece com uma pessoa depressiva? A pessoa possui uma lógica de pensamento de que nunca vai conseguir mudar, o passado é visto de maneira negativa ou apática e o futuro não existe para ela. Além disso, se instala uma inapetência para viver, uma impossibilidade de desejar e de agir. Há um sentimento de incapacidade gerando um esgotamento e uma profunda angústia que impede a pessoa de levantar da cama e, muitas vezes, é somente pelo trabalho que ela sai de casa.
Agora se a pessoa já vivenciava um quadro depressivo e perdeu o emprego a depressão se intensifica. Sabemos que o trabalho não tem apenas a função de garantir uma remuneração financeira, ele também constrói uma autoimagem positiva pelo seu valor simbólico, garantindo uma identidade e uma subjetividade realizadora. A perda do trabalho pode “desarrumar” um sujeito.
O que fazer? O primeiro passo é procurar um especialista: psiquiatra, psicólogo ou psicanalista. Avaliar a necessidade de medicação e análise/terapia. Isso é fundamental, mas insuficiente. São necessárias outras ações para que a vitalidade volte a habitar a pessoa e para isso acontecer exercícios físicos são extremamente importantes, ioga, meditação, leituras e programas positivos, contato com a natureza e o resgate ao amor próprio.
Se a mão invisível do Covid pesou sobre nós, também descobrimos a força da cooperação, o respeito pela ciência, a virtude pelo autocuidado, a suportabilidade da incerteza e a alegria daquilo que de fato tem valor na vida: saúde, família, amigos, disciplina e determinação de hoje sermos uma versão melhor de quem fomos ontem.
*Márcia Tolotti é psicóloga e psicanalista, consultora e especialista em educação psicofinanceira pessoal e corporativa.