Distanciamento ou isolamento social: uma visão da pandemia para a criança autista

Por Dra. Renata Sacaloski (*)

Lá se foi um ano de pandemia, e continuamos sentindo os impactos diários desse nosso “novo normal”. Medo da doença, ansiedade e álcool gel passaram a compor a nossa rotina. Conhecemos, agora, cada canto da casa, os barulhos dos vizinhos – do home office, das conversas e discussões, as músicas que gostam, os cheiros do almoço ou daquela tentativa falha de bolo queimando no meio da tarde. Instabilidade econômica e política, novos receios e preocupações. Pais retornaram à sala de aula, agora on-line. As saudades, quantas saudades! Do parque, do shopping, da academia, de jantar fora, da piscina do condomínio. Do vovô, da tia, da sobrinha. Do abraço. Do cumprimento com variados números de beijos: um em são Paulo, dois no Rio, se for em Minas são três. De assoprar velas do bolo. E a certeza de que nunca mais seremos os mesmos.

O coronavírus nos desafiou a enxergar o mundo com outros olhos.

Agora, convido você a fechar os seus. Feche os seus olhos. Imagine que você seja uma pessoa que tem uma relação bastante particular com o mundo. Você tem dificuldade em expressar suas necessidades e sentimentos, em entender o que os outros dizem ou demonstram através de gestos e expressões faciais. E como você não compreende muito bem esse mundo aqui fora, tudo traz uma sensação de confusão e desordem, ruídos altos fazem até doer o ouvido. Não só a audição, mas a sensibilidade da sua pele e o seu olfato também são diferentes: às vezes um simples toque pode lhe causar espanto, um cheiro pode gerar irritação. É difícil pra você organizar as sensações do seu próprio corpo e as do ambiente. Então o seu mundo interno te convida. Te tranquiliza ficar só, se balançar ou repetir movimentos, como se você mesmo se ninasse.

Uma em cada 160 crianças se sente assim. 70 milhões de pessoas no mundo.

O TEA – Transtorno do espectro autista, ou autismo, é uma desordem do desenvolvimento neurológico presente desde o nascimento e que afeta o comportamento do indivíduo, principalmente a comunicação e a interação social (como a linguagem verbal, a linguagem não verbal, a compreensão e sintonização socioemocionais). Pode gerar comportamentos repetitivos e padrões restritos de interesse, alteração de sensibilidade a estímulos ópticos, olfatórios ou táteis. Todos os pacientes com autismo convivem com estas dificuldades em intensidades diferentes.

É uma síndrome da qual não pudemos ainda definir todas as causas e não conseguimos evitá-la. Temos evidências, até o momento, de que há fatores genéticos envolvidos: mutações espontâneas, que podem ocorrer esporadicamente, e herança genética, transmitida de geração a geração. E há, ainda, outras evidências de que fatores externos como estresse, infecções e exposição a substâncias tóxicas também estão relacionadas à sua manifestação.

Todos fomos compelidos a modificar abruptamente nosso cotidiano. Na casa de um autista, os rituais – tão importante para estas crianças, para que elas se sintam seguras e parte deste mundo aqui fora – foram completamente alterados e restritos. O que ele conhecia sumiu! E depois precisou ser reconstruído. As dicas visuais, como medidas de ajuste, ajudam: a figura dos passos da rotina ao acordar, como trocar de roupa, escovar os dentes, tomar o café da manhã. Manter a programação da escola também é benéfico: o horário de acordar, o horário do lanche, momento da atividade e da brincadeira.

A escola e as terapias necessárias foram transformadas de toque e de proximidade em tela de computador. Tão importantes de serem preservadas, tiveram que ser revisadas, reorganizadas de maneiras diferentes e criativas. O terapeuta e o professor passaram a orientar a brincadeira e o exercício.

Mas em casa os barulhos são outros, ler as expressões do rosto, que já era difícil, agora ocultas por máscaras, ficou confuso. Temos uma miscelânia de sentimentos para lidar: a criança e os pais, que também estão aflitos. Mas sem agitação particular sobre o corona: o transtorno do espectro autista não é fator de risco para a COVID-19! As chances são as mesmas das demais crianças. Mas… A ansiedade.

Como se intensificou esse sentimento! E que justo, não é? Para os pais, para os professores e para os autistas. E tivemos que tomar cuidado para não aumentar a medicalização imprópria. É esperado, diante da imprevisibilidade e falta de controle da situação, que aumentem os comportamentos repetitivos e o isolamento, como forma de regulação. Já percebeu que agora temos ficado mais tempo em redes sociais e, mesmo com a família toda em casa, cada um preso à sua atividade e ao seu espaço? Imagine só para aquele que já tende a se sentir seguro neste movimento!

Que bom que a telemedicina também chegou para ajudar: o paciente autista e o paciente “família do autista” também. Vamos nos lembrar de cuidar também de quem cuida, revezando a função de estar com a criança com períodos de autocuidado, descontração e reencontro consigo, e procurando ajuda profissional quando necessária. Quantos recursos temos hoje, inclusive em práticas integrativas que nos auxiliam no cuidado.

Mas bela e resiliente sem igual, a criança foi transformando tudo em oportunidade. Enxergando diferente, viu uma janela que não podemos perder! Estar em casa, alterar o dia a dia, conviver com novas sensações, de repente, possibilitou o desenvolvimento interpessoal e aprofundou o vínculo afetivo com os pais, irmãos.

Vamos juntos com eles nesse barco e reaprender a brincar. Tornar este momento juntos único, ensinar o valor simbólico da brincadeira: cuidar do bebê, a corrida de carrinho, fazer comidinha, fazer o lápis de cor virar a espada do guerreiro. O autista precisa que o guiem nesse universo imaginativo. Traz bons resultados também inserir a criança na cooperação de atividades domésticas. Reinvente o toque, a sensação de texturas, a exploração dos sentidos em contexto lúdico: que tal brincar de bolhas de sabão perfumadas, de adivinhar o objeto colocado nas mãos com os olhos fechados, pintura em papel com gelos coloridos, cantarolar músicas e cantigas de roda?

O autista, ou melhor, a criança e sua família se conectando e se conhecendo. E, enquanto está tudo distante, ninguém ficará isolado.

(*) Médica pediatra do Vera Cruz Hospital especializada em Pediatria do desenvolvimento e comportamento (CRM 157.093 – RQE 67.082)